Cotidiano

Não abusa que dói

Li dia desses no Twitter (que mesmo sendo agora o X, para mim sempre será o Twitter e meus amigos, os “Tuiteiros”) um post de uma amiga que falava que ouviu de um ser humano super gentil (para não dizer o contrário!) que nenhum homem mais iria desejá-la, pois como ela teve diástase na gravidez e a barriga dela, segundo o interlocutor, ficou horrível. Isso a fez ficar anos sem sair com alguém, marcada pelas palavras de alguém que queria machucá-la, e quando o fazia, não acendia a luz se chegasse aos finalmentes, se chegasse, pois ficou traumatizada.

Diástase, para quem não sabe o que é, vamos ao pai GOOGLE que nos esclarece que é um problema bastante comum entre as mulheres, após o parto ou obesidade, onde ocorre uma deformação do abdome pelo afastamento dos músculos reto abdominais, causando flacidez abdominal e dor lombar, pois a musculatura abdominal fica enfraquecida e esticada devido ao crescimento da barriga na gravidez ou pela perda rápida de peso.

Para diástase, tem tratamento. Para idiotice e falta de sensibilidade e empatia, não. Fiquei me perguntando o que faz uma pessoa falar isso para alguém dessa forma, ainda mais se esse indivíduo possui um relacionamento com a mulher para quem fala isso, pois na minha inocente interpretação (falo inocente, pois mesmo sabedora de tantas misérias humanas, ainda acredito.), o amor não machuca, não diminui, não faz mal.

Meu primeiro impulso é querer saber quem foi que disse isso para que a gente mande dar uma surra. Impulso não realizado. Mas que dá uma vontade enorme, dá, pois mesmo que quebremos as pernas de um ser desses, os prejuízos causados na alma dessa mulher, a dor, a vergonha, o trauma e a morte de sua autoestima são maiores do que qualquer dor.

Minha amiga é uma mulher trabalhadora, é pai e mãe, tem mais de um emprego, se vira de todas as formas, cumpre com suas obrigações, realiza trabalho voluntário, é uma pessoa agradável, sociável e esclarecida, mas sofreu com palavras de uma pessoa abusiva, e mesmo sabendo que foram palavras para machucar, elas entraram em sua cabeça, ficaram e causaram o prejuízo esperado pelo emissor.

Falo isso com propriedade, pois durante um tempo, eu vivi um relacionamento abusivo. Relações abusivas são bastante democráticas, pois não existe classe social, grau de instrução, gênero, cor ou credo. Elas atingem a todos os que recebem e dão afeto. E são, além de democráticas, discretíssimas, pois demoramos a percebê-las, quando a percebemos. Geralmente quem olha de fora, enxerga melhor do que os que estão no centro, mas quando somos alertados, achamos que é exagero da pessoa que nos reporta.

Pensamos que isso não é possível estar acontecendo, pois se realmente estivesse, perceberíamos. E outra: trata-se da observação de alguém que não está vivendo o que nós vivemos. Temos essa estranha mania de romantizar o abuso. Confundimos com amor, zelo, cuidado. Achamos que esse ciúme excessivo é porque o ser amado nos quer somente para ele por excesso de amor. Não vemos que podemos estar objetificados e reduzimos a mera posse ou até mesmo propriedade.

Achamos que pode ser qualquer coisa, como estresse, pressão no trabalho, dívidas ou problemas o motivo de nosso amor ter estourado e nos destratado, e como os estouros são sempre precedidos de desculpas robustas, convincentes e por muitas vezes nos confirmam que a culpa foi nossa por não termos sido compreensivos na medida exigida, acompanhado de um “viu o que você me fez fazer com você?”, e acabamos por pedir desculpas por coisas que não fizemos, mas acreditamos ter feito, quando na verdade estamos sendo vítimas de abuso covarde e mesquinho.

Ouvi muitas vezes que eu estava velha, gorda e que ninguém iria me querer, e o pior disso tudo foi que durante muito tempo eu acreditei nisso e me enxerguei assim, e olha que a diferença de idade era pequena entre o alecrim dourado e perfeito e eu. Todos os meus amigos não prestavam ou não estavam à altura de conviver comigo, pois o abusador nos isola, pois juntamente com o abuso vem as traições e já prepara o terreno, caso alguém que te ame queira te alertar de um ou de outro. “Não acredite no que o Fulano está te falando isso porque não gosta de mim! Falei que ele não presta! Quer nos separar!”. Não precisava fazer academia porque ele me amava gorda. Não precisava fazer cabelo, unhas ou me maquiar porque ele gostava de mim natural. Classificava roupas, lugares e comportamentos como “de puta” e “de uma mulher como você”.

Não sei se a pessoa que faz isso com outra acredita realmente em suas afirmações ou se interpreta uma personagem. Independentemente disso, o prejuízo é devastador, pois diferente da violência física que deixa na maioria das vezes, marcas aparentes, a violência psicológica segue camuflada de amor excessivo e suas marcas invisíveis nos acompanham durante toda nossa existência, pois por mais que descubramos o abuso e saiamos dele, conviveremos para sempre com questões como insegurança quanto nossa autoimagem, bloqueios dos mais variados tipos, gatilhos inúmeros e feridas abertas em nossa autoconfiança e autoestima, sem falar na dificuldade extrema de confiar nas pessoas e acreditar que merecemos os elogios recebidos.

Até descobrirmos que o abusador é inseguro em relação a si mesmo e por isso se utiliza de mecanismos covardes para nos diminuir visando se sentir maior e melhor que nós, até enxergar seu perfil infantilizado, egoísta e narcisista são anos e anos de terapia, isso quando descobrimos. Eu mesma, depois dessa experiencia, ao me deparar com uma pessoa que dizia estar interessada em mim, retribui ao interesse com descrença absoluta e o processo de acreditar novamente em alguém me dizendo que sou linda e maravilhosa foi pauleira (mas depois desacreditar nisso que me é impossível hoje…).

Somos criadas para calar, aceitar, achar que não estamos à altura, que não somos boas o suficiente, que devemos atender às expectativas e padrões socialmente aceitos e admirados e qualquer coisa que fuja disso está errado e subverte a ordem estabelecida, e por isso somos as vítimas ideais desse tipo de abordagem, pois qualquer coisa que nos denigra e diminua entrará em nossas cabeças como flexa perfurando nosso cérebro e infectando cada neurônio.

Deveria haver vacina contra abuso. Deveria, mas não tem. O que tem somos nós nos fortalecermos uns aos outros, e lembramos que amor não diminui, não machuca, não destrói, não faz mal e nem deve ser um peso. Quem ama faz bem, quer bem, acarinha e recebe, ao invés do contrário. Pode parecer óbvio, mas esquecemos disso de vez em quando.

Igualmente importante é, ao passarmos por tal experiencia, não nos tornamos os agressores como forma de extravasar nossa revolta ou por nos colocarmos de forma reativa-preventiva ao que vier. Ao fazermos isso, fortalecemos o ciclo da violência e passamos de vítimas a algozes. Endurecer, sim, sem perder a ternura, parafraseando um famoso e controverso revolucionista, ou simplificando pedagogicamente com as frases do meu avô Miranda, lembremos que quem muito se abaixa, o fundo aparece.

Podemos passar por um relacionamento abusivo, sair dele e entrar em novo abuso, por acharmos que esse tipo de amor é o que merecemos. Ledo engano! Ninguém merece ou deveria passar por isso. Podemos também passar por um relacionamento abusivo e nunca mais permitir que sejam abusivos conosco em qualquer área da vida. Mas seguimos lambendo as feridas que ainda podem doer ou não, com a certeza de que sobrevivemos. Se você conseguiu, aprendeu a fortalecer quem passa por isso e é grato por saber que um dia achou que não conseguiria. Mas conseguiu. E sabe que não é fácil, não é rápido e muita gente não consegue. Agradeça.

Texto: Telma Miranda

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